[Nos anos que Se seguiram ao Concílio, a Igreja Católica atravessou um momento extremamente difícil, relativamente à piedade popular…
Com efeito, a vida espiritual não Se encerra na participação da Liturgia. Embora seja “fonte e cume”, não exclui a oração pessoal, nem Os “exercícios de piedade” do povo cristão, vivamente recordados pela Constituição Litúrgica.
Requer-se que sejam conformes as leis e normas da Igreja, sobretudo quando (...), celebrados, segundo os costumes ou os livros legitimamente aprovados.
No entanto, assistiu-se à emergência de um movimento, cuja finalidade era votar ao ostracismo tudo o que se considerasse exercícios piedosos, devoções, religiosidade e piedade populares (...). A renovação litúrgica e a publicação de livros litúrgicos oficiais, que codificavam os novos ritos e os novos textos, pareciam marginalizar as “práticas de piedade”...
A fim de dar toda a importância à reforma litúrgica, os liturgistas sublinharam muitas vezes (e exageraram) a superioridade do Liturgia e desprezaram as populares “práticas piedosas”. Tratou-se de um regresso a uma certa tendência “pan-litúrgica” já presente nos anos 40,.. que levou Pio XII, na Encíclica ‘Mediator Dei”, a qualificar de pernicioso e totalmente errado o facto de se querer reformar todos os exercícios piedosos, reduzindo-os a simples esquemas e formas litúrgicas...
Para além do que preconizava o Concilio, tratou-se de urna verdadeira vaga de desconfiança e suspeição, de dúvida e desprezo, até mesmo abandono pastoral e desmantelamento acelerado e confuso, que desabou sobre a piedade popular. Foi o que aconteceu, por exemplo, na América Latina [sublinha o autor]. A “religiosidade popular” conheceu no seio da Igreja católica, particularmente nos padres e intelectuais, os momentos mais difíceis de toda a sua história… a religiosidade popular foi desprezada, conheceu vexames, foi considerada, no máximo, como um último reduto em via de extinção, vestígio mágico e fetichista...
Numerosos acasos históricos participaram neste estado de facto. As influências (tendências) da teologia protestante da secularização - com a oposição Fé / Religião — misturaram-se ao apogeu, até a hegemonia cultural do marxismo, com o seu slogan de “Ópio do povo”. Concertaram-se a difusão das sociologias funcionalistas da ‘modernização” na oposição esquemática e convencional, entre o sagrado, tradicional, rural e pré-moderno, de um lado, e o laico, urbano, racional e moderno, do outro... Não foi por acaso que no final, de 60, o processo de secularização deu um salto qualitativo e quantitativo, numa descristianização inédita... Sublinhemos que o fenómeno teve lugar, a par de uma grave crise “de identidade” nos padres, ate nos próprios cristãos, que abalou profundamente a Igreja..
Quais foram as consequências?
Em primeiro lugar, e de forma paradoxal, esta situação critica permitiu abanar numerosas formas de piedade popular, limitadas num certo imobilismo secular. Nesse sentido, Paulo VI, com muita delicadeza, referiu, na Exortação Apostólica “Marialis Cultus” que as formas de expressão dessa piedade, sujeitas a usura dos séculos, precisavam de ser renovados, substituídos os seus elementos caducos, valorizados os que passaram a prova do tempo e nelas se incorporassem os dados doutrinais, adquiridos pela reflexão teológica e propostos pelo Magistério eclesiástico.
Depois apareceu um vazio catastrófico: as devoções que suportavam e davam relevo a vida cristã, no seu ritmo quotidiano, semanal ou estacional, não foram substituídas pela vida litúrgica.
Este fenómeno poderia ter sido englobado num traço mais geral.’ perante o facto de “que bairros, lugarejos e vilas ficavam desertas, se encontravam privadas de história, de cultura, de religião, de linguagem e de identidade. As consequências foram dramáticas.
Infelizmente, perante o vazio deixado, muitos se aproximaram de formas degeneradas de religiosidade popular ou das “seitas”...
Card Norberto R. Carrera, Arc. Cidade do Mexico, in “Documentation Catholique”, n° 2276 (Tradução e Adaptação)