Pastores do mundo, sob o olhar da Mãe de Deus Amados irmãos e irmãs, aqui reunidos na igreja catedral do Porto, e todos vós, que nos seguis pela Rádio Renascença: Como é habitual – e muito além de qualquer rotina -, celebramos em toda a Igreja Católica a Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus e o Dia Mundial da Paz. Não se trata, de modo algum, de simples justaposição de motivos; é antes decorrência lógica, como a própria selecção dos trechos bíblicos escutados bem manifesta. Na verdade, a paz, enquanto sentimento e experiência de harmonia profunda de todos para todos e dentro de cada um de nós, só se pode encontrar onde a totalidade do real se ofereça e apreenda, sem excluir qualquer dimensão do que somos, sonhamos e vamos conseguindo. - Fronteiras largas e profundas tem a paz, pois não se atinge sem que chegue a todos e não se alcança senão no mais íntimo e transcendente de cada um! Por isso, mais do que conquista, é dádiva, recebida e partilhada, como a própria vida. Por isso ainda, requerendo a nossa reflexão e coerência, não dispensa predisposição e acolhimento. Acolhimento, repito, da totalidade do real, em autêntico “desenvolvimento” de todos os homens e do homem todo, para usar uma bela expressão de Paulo VI. Alcança-se a paz quando cada ser humano tem liberdade física e psíquica para se descobrir a si mesmo, como vocação pessoal e inter-pessoal, segundo as potencialidades gerais e suas próprias. Quando essa mesma liberdade é possibilitada e estimulada, por uma pedagogia familiar e social que a preencha com todos os contributos válidos da cultura e da civilização, isto é, pelo acervo acumulado das múltiplas “conquistas” do espírito humano, que efectivamente comprovaram ser verdadeiras, boas e belas para a generalidade das pessoas e dos povos. Quando a organização política nacional e internacional se orienta para a prossecução desse mesmo “bem comum”, oferecendo-o aos cidadãos, sem aprioristicamente o limitar por ideologias redutoras ou impositivas, como seria o caso do laicismo ou do fundamentalismo religioso. Trata-se de servir pessoas concretas, habilitando-as para a escolha consciente e responsável; não se trata de governar as pessoas contra elas próprias, escolhendo por elas e até antes delas o que houvessem de crer e fazer. O Papa Bento XVI ofereceu-nos uma luminosa Mensagem para o Dia Mundial da Paz. Será certamente matéria de reflexão atenta para crentes e não crentes, plena que está de motivos indispensáveis, sobre “a liberdade religiosa, caminho para a paz”. Como este, que devo citar, pela sua inegável oportunidade e precisão, quer quanto à formulação do direito, quer quanto às suas consequências, aliás não unívocas: “A liberdade religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica. Trata-se de um bem essencial: toda a pessoa deve poder exercer livremente o direito de professar, individual ou comunitariamente, a própria religião ou a própria fé, tanto em público como privadamente, no ensino, nos costumes, nas publicações, no culto e na observância dos ritos. Não deveria encontrar obstáculos, se quisesse eventualmente aderir a outra religião ou não professar religião alguma” (Mensagem, nº 5). E o Papa adianta depois, com igual clareza: “A mesma determinação, com que são condenadas todas as formas de fanatismo e de fundamentalismo religioso, deve animar também a oposição a todas as formas de hostilidade contra a religião, que limitam o papel público dos crentes. Não se pode esquecer que o fundamentalismo religioso e o laicismo são formas reverberadas e extremas de rejeição do legítimo pluralismo e do princípio da laicidade. De facto, ambas absolutizam um visão redutiva e parcial da pessoa humana, favorecendo formas, no primeiro caso, de integralismo religioso e, no segundo, de racionalismo. […] Por isso mesmo, as leis e as instituições duma sociedade não podem ser configuradas ignorando a dimensão religiosa dos cidadãos ou de modo que prescindam completamente da mesma” (Mensagem, nº 8). Creio que, quando assimilarmos esta doutrina - que o Papa não deixa de referir, no seu conjunto, a afirmações fundamentais quer do Concílio Vaticano II (1965), quer da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) -, nos poderemos reencontrar muito mais, também como sociedade portuguesa, para aproveitarmos os recursos que cada um proporcionará ao conjunto, pessoal e conjugadamente; e para que a administração pública possa distribuir melhor as contribuições de todos para todos, do modo mais subsidiário e solidário possível, na educação, na saúde e na segurança social, dentro do Estado que também todos democraticamente integramos. E isto mesmo, tanto nas instâncias que dependem directamente da referida administração, como nas que resultam da espontaneidade social de famílias e instituições reconhecidas, que igualmente servem e acrescentam o bem comum, por vezes com grande excelência de resultados e inestimável generosidade pessoal, potenciada pelas respectivas convicções religiosas e humanitárias. Como atrás aludi, a sequência dos trechos bíblicos desta Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus dá-nos a maior fundamentação de tais motivos. Não os forçamos, são eles mesmos que nos reforçam a convicção expendida. Sigamo-los brevemente: Ouvimos a antiga bênção, que Moisés aprendeu do próprio Deus e tão bem ressoa neste começo de ano. “O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz!”. Isso mesmo de algum modo “ouviu” a humanidade, desde que ganhou consciência de si mesma: as mais antigas expressões de lucidez e engenho referem-se a algo mais do que o imediato, deixaram em artefactos e paredes de grutas sinais e apelos dum mais além que garantisse – apaziguasse! – o aquém, sofrido ou temido. A admirável marcha de verdadeiros progressos que hoje preenchem a cultura, a ciência e a técnica, deram muito mais consistência ao que garantimos por nós, mas não dispensam um “olhar” benévolo que não nos deixe sós. “Olhar de Deus”, ainda antes e depois de qualquer expressão verbal, determinante ou proponente, que a divina pedagogia requeira. Expressão primeira e envolvente de amor criativo e acolhedor. Como a alvorada que promete o Sol, como o brilho que distingue as coisas, como o incentivo que alenta sempre. Olhar que reluz nos insubstituíveis olhos maternais que envolvem cada geração humana e que aqui agradecidamente evocamos em todas as mães onde nasce e nascerá este “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2011”. Foi envolto neste olhar de Deus Pai, rebrilhante no de uma singularíssima Mãe humana, que o Filho de Deus nasceu no mundo, como São Paulo referiu em breve versículo de duradoura lição: “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei e nos tornar seus filhos adoptivos”. - Duradoura lição, que sempre reaprenderemos e havemos de aprofundar! É tão recorrente imaginarmos Deus e revela-se tão difícil aceitá-Lo assim, agora “nascido de uma mulher”, igualado a nós para nos integrar, ao seu inaudito modo, na própria vida divina... Na verdade, a absoluta simplicidade de Deus liberta-nos das infindas complicações e enredos com que – mesmo a pretexto de “religião” – nos detemos no que afinal é apenas e excessivamente nosso. No “Filho de Maria”, renascemos como filhos de Deus, na simplificação absoluta da religião, que apenas sondaríamos antes: “E porque sois filhos – continuava São Paulo -, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: ‘Abá! Pai!’. Assim já não és escravo, mas filho. E, se és filho, também és herdeiro, por graça de Deus”. É também assim que, da liberdade religiosa – sempre indispensável, mas ainda algo exterior -, Deus nos eleva em absoluta libertação, numa verdadeira e íntima relação, ou “religião”, de co-herdeiros com Cristo. Esta é a libertação propriamente cristã, no Espírito de Cristo, o “Filho de Maria”, a Santa Mãe de Deus. Mas é no Evangelho escutado que podemos deparar com a autêntica súmula de quanto celebramos hoje. Num rápido esboço apenas: Contava São Lucas que “naquele tempo, os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura”. Assim mesmo Os devemos encontrar também, com a urgência que certamente sentimos. E por aquela mesma ordem: primeiro, viram a Mãe, que O recebera de Deus, como novo começo e perfeita libertação do mundo, pois é em Cristo e nos que vivem em Cristo que finalmente a criação inteira respirará isenta. Como disse São Paulo, noutro passo: “Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus […], para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus” (cf. Rm 8, 19-21). Primeiro Maria, para que o primeiríssimo Jesus pudesse acontecer no mundo, na nova terra que Ela mesma figurava. Ainda aqui – e de que maneira! – se pode e deve falar de liberdade religiosa, pois o consentimento de Maria à proposta única da Anunciação, significou a plena realização da sua liberdade pessoal, capaz de ultrapassar justificados receios e compreensíveis dúvidas, pela consentida rendição ao absoluto e humílimo poder de Deus: absoluto e humílimo como o amor autêntico, que tudo oferece e sempre depende de quem o aceite. Depois viram José, porque é necessário que alguém guarde e tutele os dons Deus aos homens. É muito elucidativo verificar como grandes obreiros da recriação do mundo, através da “recriação” da Igreja – Corpo de Cristo em crescimento –, se confiaram tanto a São José, fosse Teresa de Ávila para reformar o Carmelo, fosse João XXIII para “aggiornare” a vida eclesial. De Maria e José, os pastores concentraram-se naquele “Menino deitado na manjedoura”, tudo “como lhes tinha sido anunciado”. Em tal pobreza puderam entrever a riqueza divina, que assim os libertava de qualquer exclusão que fosse. Num palácio nasceria um “deus” para os grandes, como o César de Roma, rodeado de grandíssima corte. Numa manjedoura estava Deus para todos, entre Maria e José, começando pelos pastores que acorriam. Assim na Santa Madre Igreja, quando permanece livre e liberta, inteiramente disponível para acolher e cumprir a palavra divina, como Santa Maria Mãe de Deus. Aí acorrerão os pobres de todas as pobrezas, porque a eles é anunciada a Boa nova da perfeita libertação (cf. Lc 4, 18). E os pobres trarão os ricos, feitos pobres também, finalmente seduzidos por um Reino que só aos “pobres em espírito” se promete (cf. Mt 5, 3). Continuava o Evangelho, como temos de terminar por agora: “Quando O viram, os pastores começaram a contar o que lhes tinham anunciado sobre aquele Menino. E todos os que ouviam admiravam-se do que os pastores diziam”. Ninguém disfarça um espanto, ninguém sufoca a alegria. Desde então se “começou a contar” a história viva daquele Menino e sua Mãe. Ou melhor, essa mesma história se tornou História da Igreja, fermentação persistente da liberdade do mundo. Daqueles pastores nada mais sabemos, nem se foram sempre coerentes com o anúncio que faziam. O mesmo se diga das muitíssimas gerações crentes que o mediaram até chegar a nós. Uns sim, outros menos e outros, infelizmente, muito pelo contrário… Vale o mesmo anúncio, como indispensável é quem o transporte e a liberdade para o fazer. E não é difícil apurar que as próprias contrafacções do anúncio - que devia ser sempre tão libertador como o foi naqueles primeiros dias - foram rejeitadas e superadas, antes de mais, por quantos se têm felizmente somado como verdadeiras testemunhas do Evangelho de Cristo, para a libertação do mundo. As contrafacções da religião não se corrigem com a ausência dela, mas sempre e só com melhor religião. Com Bento XVI, teremos até de constatar e afirmar: “Inegável é a contribuição que as religiões prestam à sociedade. São numerosas as instituições caritativas e culturais que atestam o papel construtivo dos crentes na vida social. Ainda mais importante é a contribuição ética da religião no âmbito político. Tal contribuição não deveria ser marginalizada ou impedida, mas vista como válida ajuda para a promoção do bem comum” (Mensagem, nº 6). Com estes sentimentos e reflexões, caríssimos irmãos e irmãs, continuemos a celebração de Santa Maria Mãe de Deus – Dia Mundial da Paz. E tomemos para lema e missão de 2011 os mesmos dos pastores de há dois milénios, pois cada crente se há-de tornar um constante pastor do mundo, pelo cuidado solícito em relação a toda a obra divina: “Os pastores regressaram, glorificando a louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, como lhes tinha sido anunciado”. - Sobre eles se alongava decerto o olhar maternal de Maria, como agora nos envolve e encoraja a nós! + Manuel Clemente Sé do Porto, 1 de Janeiro de 2011 |
domingo, 2 de janeiro de 2011
HOMILIA DE ANO NOVO - 1 DE JANEIRO DE 2011 – SOLENIDADE DE SANTA MARIA MÃE DE DEUS – DIA MUNDIAL DA PAZ
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