1. Já em Ano da Fé, assinalamo-lo hoje na igreja catedral, em completa inclusão e expectativa. Inclusão de gosto e propósito, tão oportuna foi a sua convocação pelo Papa Bento XVI, nas atuais circunstâncias. A elas quis atender o Santo Padre e com ele o queremos nós, para discernir esperançosos “sinais dos tempos” em muito do qu
e
hoje ocorre, na sociedade e na Igreja. Mas connosco nada é simplesmente
mental, antes afetivamente sentido no Coração de Cristo, no incontido
desejo de a tudo atender, para tudo redimir.
E, falando de Cristo, falamos do que mais importa para a fé de sempre. Nós não acreditamos em algo, acreditamos em Alguém e em tudo o que Ele mesmo nos faz entrever: no seu Pai celeste, a quem não chegaríamos senão por Ele; no Espírito que recebe e retribuiu ao Pai, envolvendo-nos nesse movimento eterno; na Igreja, em que a sua Palavra ressoa e a sua vida sacramentalmente se faz nossa; e em todas as coisas do céu e da terra, que têm em Cristo a forma e o destino.
Sim, d’Ele tudo provém como Palavra criadora do Pai e com Ele tudo se conclui, na humanidade que o seu Espírito recria. Toda a nossa fé se resumirá inteira, quando coincidirmos de palavras e obras na doxologia final de cada Eucaristia: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória agora e para sempre!”. E o convicto Ámen do nosso assentimento far-nos-á autenticamente cristãos.
Com os Senhores Bispos, dirigi-vos em Junho passado uma carta relativamente extensa, ainda assim resumindo trechos essenciais do magistério conciliar e posterior. Podereis usá-la para concentrar o espírito e a catequese no fio condutor da nossa fé cristã.
“Fé cristã”, como acabo de dizer, mas dando à palavra “cristã” todo a substância requerida. Pois não daremos uma adesão vaga a um nome remoto; temos e queremos ter a convicção profunda e a experiência forte de um Cristo vivo que venceu a morte e nos possibilita vencê-la em cada um de nós também. Se chegarmos ao final deste ano temático ainda mais firmes numa fé autêntica, por demais bendita seja esta iniciativa de Bento XVI, para bem da Igreja e para bem do mundo: a Igreja é também Corpo (eclesial) de Cristo; o mundo é a criação que ansiosa espera “a revelação dos filhos de Deus”. E os tempos que vivemos e tantos agudamente sofrem precisam do significado ativo que o mesmo Cristo lhes proporcionará. Assim encontre em nós uma fé tão viva que em redor transborde.
2. No Evangelho há pouco ouvido, tudo isto se esclarecia em poucos versículos: “Naquele tempo, aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu: «O primeiro é este: Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há nenhum mandamento maior que estes».
Jesus atalhava assim as discussões da altura sobre a primazia deste ou daquele preceito. Em duas alíneas tudo resumiu no amor a Deus e no amor ao próximo. E o que assim ensinava, assim mesmo cumpria, numa vida repassada de amor ao Pai e aos irmãos. Cada página evangélica nos mostra como isto foi. Cada vida autenticamente cristã manifesta como continua a ser, pelo Espírito que era seu e nos move agora.
O Ano da Fé tem esta finalidade maior: simplificar-nos no essencial cristão, para vivermos em Páscoa, contínua “passagem” para o Pai e para os outros, naquele amor que nunca acabará. E isto se há de dizer e comunicar, na medida exata da vivência concreta que lhe dermos: “vida cristã” se poderá chamar então.
Mas reparemos ainda que tudo aconteceu porque “naquele tempo aproximou-se de Jesus um escriba”. A nova evangelização a que somos chamados visa para já isso mesmo: que nos aproximemos de Cristo e proporcionemos aos outros que o façam também. Seremos, mais precisamente - como crentes, famílias e comunidades – criativos mediadores de encontros com Cristo, nas atuais circunstâncias, tão desencontradas por vezes. Começando por verificar se realmente o somos, preparemo-nos e disponhamo-nos para o sermos mais e melhor. Essa é também uma “obra da fé”, que nos fará contagiar os outros com o amor de e a Cristo e com o modo pascal de levarmos a nossa existência, dia a dia e mais e mais.
3. Como sabeis, participei em Roma na última assembleia do Sínodo dos Bispos, subordinada ao tema “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. Mais de duas centenas e meia de bispos de todo o mundo, além de outros participantes e convidados, e com a presidência e participação frequente do próprio Papa Bento XVI, todos partilhámos as respetivas situações e perspetivas eclesiais, sobre este momentoso assunto. Aprovámos com grande unanimidade e aplauso a Mensagem sinodal que porventura já conheceis, pois ela traduz muito bem o essencial do que se refletiu e mais pormenorizadamente se entregou ao Santo Padre nas proposições finais.
A Mensagem entrevê na generalidade das situações eclesiais, culturais e sociais contemporâneas uma indesmentível sede de Deus, que a nós cabe corresponder, prolongando a atitude de Cristo no diálogo com aquela mulher samaritana que vinha simplesmente buscar água. Daquele poço, elevou-a Ele a uma maior Fonte, donde jorra água viva para a vida eterna, que finalmente nos sacia. Fonte e água viva de que ela depois se fez também anunciadora junto dos seus conterrâneos. Luminosamente, estão neste episódio (cf. Jo 4) todos os passos duma evangelização completa, a retomar na inegável “novidade” das atuais circunstâncias.
Apelo vivamente a que leiais, pessoal e comunitariamente, a Mensagem sinodal, pois ela tem forma e fundo mais que suficientes para vos situar em “nova evangelização” das realidades eclesiais, culturais e sociais que vos estão mais próximas. Todos precisamos de nos rever e relançar, à luz daquela brilhante “hora sexta” em que o referido trecho evangélico se continua a desenrolar.
Muito do que no Sínodo se disse refere-se à evangelização em geral e aos seus tópicos de sempre: a Palavra de Deus corretamente proclamada e profundamente acolhida, bem como o reforço catequético, sempre nela inspirado; a iniciação cristã e a verdadeira conversão mental e moral; a vida sacramental, com especial incidência na Eucaristia e na sua cuidada celebração, bem como na Reconciliação, administrada com mais prioridade e disponibilidade por parte dos seus ministros; a atenção aos pobres, primeiros no cuidado de Jesus e portanto primeiros na atenção dos seus discípulos; a família, igreja doméstica e primeira experiência da vida comunitária, indispensável para o acesso à vida divina; a comunidade cristã, nas suas várias e convergentes concretizações, imprescindível sempre para a experiência pascal e o seu progresso em nós; a real aprendizagem da oração cristã, como exercício permanente da filiação divina e motivação mais profunda da caridade universal; as virtualidades da religiosidade popular, desde que realmente se converta em piedade sem equívocos; a presença cristã no mundo, setor a setor, oferecendo a sociedades por vezes tão esgotadas e prisioneiras das suas contradições a autêntica liberdade dos filhos de Deus; a irradiação missionária, ligando agora e em recíproco exercício os indispensáveis dinamismos da missão ad gentes à necessidade de evangelizar de novo muitas realidades bem próximas… De tudo isto e ainda mais se falou nas três semanas em que decorreu o Sínodo, como podereis ler na Mensagem e melhor percebereis depois, quando o Santo Padre publicar a habitual exortação apostólica pós-sinodal.
4. Mas, se me perguntardes como e onde incidiu o Sínodo em algo que se possa chamar propriamente “nova evangelização”, dir-vos-ei o seguinte: Dos cinco continentes representados, muitos testemunhos insistiram na urgência de correspondermos à globalização com a densificação das redes eclesiais, integrando mais e melhor famílias, paróquias, grupos, movimentos, institutos e dioceses, numa malha consistente de mútuo envolvimento e estímulo, mediaticamente também. Sendo a globalização uma característica estrutural dos tempos em que vivemos, temos de a preencher com pontos concretos de real inserção cristã, onde a fé se transmita numa verdadeira iniciação e a vida se desenvolva em cristianismo certo e mais definido.
Somos potencialmente “todo o mundo”, mas não nos reduziremos a “ninguém”, em insignificâncias coletivas. Muito pelo contrário: no desenvolvimento das redes comunitárias e intercomunitárias, não só encontraremos lugares de acolhimento e inserção de cada um, como daremos à sociedade um criativo testemunho de como o global não pode diluir o particular e de como a solidariedade e a subsidiariedade mutuamente se requerem, A intensificação e até reconfiguração da experiência comunitária cristã poderá ser, mais uma vez, um bom ponto de apoio para a reativação social que a presente situação exige.
Do pontificado de João Paulo II ficaram-nos palavras de grande incidência. Por exemplo, a paróquia como “comunidade de comunidades”, ou “família de famílias; e este luminoso trecho da exortação apostólica pós-sinodal Christifideles Laici, n. 34: “É urgente, sem dúvida, refazer em toda a parte o tecido cristão da sociedade humana; mas a condição é a de se refazer o tecido cristão das próprias comunidades eclesiais”. Escrito em 1988, ilustra perfeitamente um aspeto essencial da nova evangelização que temos de levar por diante.
Por outro lado, o Sínodo reconheceu que as realidades temporais ou seculares foram preenchendo tanto o campo das preocupações e até das distrações, que pouco espaço sobra para o que vá além delas e afinal lhes poderia dar maior significado e sentido. O que era gratuito e criativo foi-se reduzindo num mercado geral de compras e vendas, que já vai muito além das coisas. O tempo livre nem sempre corresponde à libertação do tempo, o horizonte encurta-se, a transcendência esgota-se, a opacidade prevalece.
Sem pôr em causa aquela secularização que tem fundamento na revelação bíblica duma criação que não se confunde com o seu Criador e na distinção evangélica entre César e Deus, não é difícil constatar que a positiva autonomia das realidades temporais tem a sua contrafação num secularismo que se detém ou entretém no que imediatamente satisfaz ou enleva, iludindo inadiáveis questões de sentido.
Na Europa e além dela, globalização e secularização constituem hoje o quadro avassalador em que a evangelização se há de fazer. Mais uma vez – pois assim tem ciclicamente acontecido no cristianismo bimilenar – mudanças estruturais na sociedade (como será mais a globalização) e na cultura (como será mais a secularização) requerem “novidades” no modo de evangelizar. E, se à globalização teremos de corresponder com a densificação criativa da nossa vida comunitária e intercomunitária, à secularização também por aí daremos resposta. Na verdade, a experiência comunitária foi sempre o “caldo de cultura” da inteligência e da arte cristãs: é ver a insistência comunitária das cartas de Inácio de Antioquia contra as derivas gnósticas ou outras; a patrística, tão ligada à experiência comunitária de grandes pastores, de Ireneu a Agostinho ou Gregório; a segunda evangelização da Europa, provinda de experiências monástico-missionárias, célticas, beneditinas ou bizantinas, sem esquecer os “nossos” Martinho ou Frutuoso de Braga; as universidades medievais, de evidente raiz claustral… Tudo isto e muito mais, nos leva a considerar que para a nova evangelização duma cultura, que ultrapasse a opacidade secularista, urge indispensavelmente o desenvolvimento criativo da experiência comunitária cristã.
As nossas comunidades – ou os seus pastores e colaboradores mais próximos – continuam a ser procuradas para responder a necessidades urgentes, sociais ou religiosas. Muitos dos que nos procuram vêm como aquela mulher samaritana, para algo de imediato e concreto. O encontro com Jesus levou-a a outra sede que talvez nem pressentisse. “Evangelizou-a”, de facto, e tornou-a em evangelizadora também. O que mais importa agora, caríssimos irmãos, é fazermos das nossas realidades comunitárias outros tantos “poços de Jacob” onde a presença de Jesus continue por nós, em acolhimento pleno e convicção profunda, para que quem nos procura – ou despertemos para a procura - realmente encontre.
Estou certo e seguro de que, com o desenvolvimento do Ano da Fé, muito acontecerá neste sentido – e criativamente acontecerá. Mas uma condição primeiríssima se requer: que antes de mais e sempre, cada um de nós faça o caminho daquela mulher da Samaria, deixando-se interpelar por Cristo, que tem sede da nossa água – chamemos-lhe desejo e persistência – para nos dar a sua: água viva, que dá a vida eterna! Encontremos e reencontremos Jesus, insistentemente, no diálogo pleno em que a sua Palavra nos inclui; na lembrança constante do que disse e fez; na comunhão e adoração do Sacramento onde nos alimenta e espera; na Reconciliação em que nos recupera e acresce; nos irmãos, sobretudo os mais carentes e frágeis, em que nos aguarda cansado… Não haverá nova evangelização sem aquele “novo ardor” de que falava o Beato João Paulo II; ardor e fogo que apenas Cristo ateia em quem dele se abeira. - Cristo e o que sabemos em Cristo, conteúdo vivo da fé que professamos e renovadamente testemunharemos!
5. De tudo isto e muito mais teremos ocasião de conversar, caríssimos irmãos, ao longo das Jornadas Vicarais da Fé, que proximamente se iniciam. E tudo ativareis decerto, nos ambientes e setores da vossa vida eclesial e social. Creio e espero que, ao concluirmos o Ano da Fé, muito possamos partilhar e relançar em termos de nova evangelização, que outra coisa não será senão retomar nas presentes condições socioculturais a evangelização essencial de sempre.
Evangelização inteiramente acolhida e cumprida no coração e no percurso daquela jovem de Nazaré da Galileia, que assim mesmo foi Mãe de Jesus e é Mãe de nós todos, que em Cristo renascemos já. A Ela, Estrela da Nova Evangelização, nos confiamos agora, seguríssimos da sua proteção e bom conselho. Com Ela prosseguiremos, simples e totais, no acolhimento e entrega à divina vontade, único futuro do mundo.
+ Manuel Clemente
Sé do Porto, 4 de Novembro de 2012
E, falando de Cristo, falamos do que mais importa para a fé de sempre. Nós não acreditamos em algo, acreditamos em Alguém e em tudo o que Ele mesmo nos faz entrever: no seu Pai celeste, a quem não chegaríamos senão por Ele; no Espírito que recebe e retribuiu ao Pai, envolvendo-nos nesse movimento eterno; na Igreja, em que a sua Palavra ressoa e a sua vida sacramentalmente se faz nossa; e em todas as coisas do céu e da terra, que têm em Cristo a forma e o destino.
Sim, d’Ele tudo provém como Palavra criadora do Pai e com Ele tudo se conclui, na humanidade que o seu Espírito recria. Toda a nossa fé se resumirá inteira, quando coincidirmos de palavras e obras na doxologia final de cada Eucaristia: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória agora e para sempre!”. E o convicto Ámen do nosso assentimento far-nos-á autenticamente cristãos.
Com os Senhores Bispos, dirigi-vos em Junho passado uma carta relativamente extensa, ainda assim resumindo trechos essenciais do magistério conciliar e posterior. Podereis usá-la para concentrar o espírito e a catequese no fio condutor da nossa fé cristã.
“Fé cristã”, como acabo de dizer, mas dando à palavra “cristã” todo a substância requerida. Pois não daremos uma adesão vaga a um nome remoto; temos e queremos ter a convicção profunda e a experiência forte de um Cristo vivo que venceu a morte e nos possibilita vencê-la em cada um de nós também. Se chegarmos ao final deste ano temático ainda mais firmes numa fé autêntica, por demais bendita seja esta iniciativa de Bento XVI, para bem da Igreja e para bem do mundo: a Igreja é também Corpo (eclesial) de Cristo; o mundo é a criação que ansiosa espera “a revelação dos filhos de Deus”. E os tempos que vivemos e tantos agudamente sofrem precisam do significado ativo que o mesmo Cristo lhes proporcionará. Assim encontre em nós uma fé tão viva que em redor transborde.
2. No Evangelho há pouco ouvido, tudo isto se esclarecia em poucos versículos: “Naquele tempo, aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu: «O primeiro é este: Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há nenhum mandamento maior que estes».
Jesus atalhava assim as discussões da altura sobre a primazia deste ou daquele preceito. Em duas alíneas tudo resumiu no amor a Deus e no amor ao próximo. E o que assim ensinava, assim mesmo cumpria, numa vida repassada de amor ao Pai e aos irmãos. Cada página evangélica nos mostra como isto foi. Cada vida autenticamente cristã manifesta como continua a ser, pelo Espírito que era seu e nos move agora.
O Ano da Fé tem esta finalidade maior: simplificar-nos no essencial cristão, para vivermos em Páscoa, contínua “passagem” para o Pai e para os outros, naquele amor que nunca acabará. E isto se há de dizer e comunicar, na medida exata da vivência concreta que lhe dermos: “vida cristã” se poderá chamar então.
Mas reparemos ainda que tudo aconteceu porque “naquele tempo aproximou-se de Jesus um escriba”. A nova evangelização a que somos chamados visa para já isso mesmo: que nos aproximemos de Cristo e proporcionemos aos outros que o façam também. Seremos, mais precisamente - como crentes, famílias e comunidades – criativos mediadores de encontros com Cristo, nas atuais circunstâncias, tão desencontradas por vezes. Começando por verificar se realmente o somos, preparemo-nos e disponhamo-nos para o sermos mais e melhor. Essa é também uma “obra da fé”, que nos fará contagiar os outros com o amor de e a Cristo e com o modo pascal de levarmos a nossa existência, dia a dia e mais e mais.
3. Como sabeis, participei em Roma na última assembleia do Sínodo dos Bispos, subordinada ao tema “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. Mais de duas centenas e meia de bispos de todo o mundo, além de outros participantes e convidados, e com a presidência e participação frequente do próprio Papa Bento XVI, todos partilhámos as respetivas situações e perspetivas eclesiais, sobre este momentoso assunto. Aprovámos com grande unanimidade e aplauso a Mensagem sinodal que porventura já conheceis, pois ela traduz muito bem o essencial do que se refletiu e mais pormenorizadamente se entregou ao Santo Padre nas proposições finais.
A Mensagem entrevê na generalidade das situações eclesiais, culturais e sociais contemporâneas uma indesmentível sede de Deus, que a nós cabe corresponder, prolongando a atitude de Cristo no diálogo com aquela mulher samaritana que vinha simplesmente buscar água. Daquele poço, elevou-a Ele a uma maior Fonte, donde jorra água viva para a vida eterna, que finalmente nos sacia. Fonte e água viva de que ela depois se fez também anunciadora junto dos seus conterrâneos. Luminosamente, estão neste episódio (cf. Jo 4) todos os passos duma evangelização completa, a retomar na inegável “novidade” das atuais circunstâncias.
Apelo vivamente a que leiais, pessoal e comunitariamente, a Mensagem sinodal, pois ela tem forma e fundo mais que suficientes para vos situar em “nova evangelização” das realidades eclesiais, culturais e sociais que vos estão mais próximas. Todos precisamos de nos rever e relançar, à luz daquela brilhante “hora sexta” em que o referido trecho evangélico se continua a desenrolar.
Muito do que no Sínodo se disse refere-se à evangelização em geral e aos seus tópicos de sempre: a Palavra de Deus corretamente proclamada e profundamente acolhida, bem como o reforço catequético, sempre nela inspirado; a iniciação cristã e a verdadeira conversão mental e moral; a vida sacramental, com especial incidência na Eucaristia e na sua cuidada celebração, bem como na Reconciliação, administrada com mais prioridade e disponibilidade por parte dos seus ministros; a atenção aos pobres, primeiros no cuidado de Jesus e portanto primeiros na atenção dos seus discípulos; a família, igreja doméstica e primeira experiência da vida comunitária, indispensável para o acesso à vida divina; a comunidade cristã, nas suas várias e convergentes concretizações, imprescindível sempre para a experiência pascal e o seu progresso em nós; a real aprendizagem da oração cristã, como exercício permanente da filiação divina e motivação mais profunda da caridade universal; as virtualidades da religiosidade popular, desde que realmente se converta em piedade sem equívocos; a presença cristã no mundo, setor a setor, oferecendo a sociedades por vezes tão esgotadas e prisioneiras das suas contradições a autêntica liberdade dos filhos de Deus; a irradiação missionária, ligando agora e em recíproco exercício os indispensáveis dinamismos da missão ad gentes à necessidade de evangelizar de novo muitas realidades bem próximas… De tudo isto e ainda mais se falou nas três semanas em que decorreu o Sínodo, como podereis ler na Mensagem e melhor percebereis depois, quando o Santo Padre publicar a habitual exortação apostólica pós-sinodal.
4. Mas, se me perguntardes como e onde incidiu o Sínodo em algo que se possa chamar propriamente “nova evangelização”, dir-vos-ei o seguinte: Dos cinco continentes representados, muitos testemunhos insistiram na urgência de correspondermos à globalização com a densificação das redes eclesiais, integrando mais e melhor famílias, paróquias, grupos, movimentos, institutos e dioceses, numa malha consistente de mútuo envolvimento e estímulo, mediaticamente também. Sendo a globalização uma característica estrutural dos tempos em que vivemos, temos de a preencher com pontos concretos de real inserção cristã, onde a fé se transmita numa verdadeira iniciação e a vida se desenvolva em cristianismo certo e mais definido.
Somos potencialmente “todo o mundo”, mas não nos reduziremos a “ninguém”, em insignificâncias coletivas. Muito pelo contrário: no desenvolvimento das redes comunitárias e intercomunitárias, não só encontraremos lugares de acolhimento e inserção de cada um, como daremos à sociedade um criativo testemunho de como o global não pode diluir o particular e de como a solidariedade e a subsidiariedade mutuamente se requerem, A intensificação e até reconfiguração da experiência comunitária cristã poderá ser, mais uma vez, um bom ponto de apoio para a reativação social que a presente situação exige.
Do pontificado de João Paulo II ficaram-nos palavras de grande incidência. Por exemplo, a paróquia como “comunidade de comunidades”, ou “família de famílias; e este luminoso trecho da exortação apostólica pós-sinodal Christifideles Laici, n. 34: “É urgente, sem dúvida, refazer em toda a parte o tecido cristão da sociedade humana; mas a condição é a de se refazer o tecido cristão das próprias comunidades eclesiais”. Escrito em 1988, ilustra perfeitamente um aspeto essencial da nova evangelização que temos de levar por diante.
Por outro lado, o Sínodo reconheceu que as realidades temporais ou seculares foram preenchendo tanto o campo das preocupações e até das distrações, que pouco espaço sobra para o que vá além delas e afinal lhes poderia dar maior significado e sentido. O que era gratuito e criativo foi-se reduzindo num mercado geral de compras e vendas, que já vai muito além das coisas. O tempo livre nem sempre corresponde à libertação do tempo, o horizonte encurta-se, a transcendência esgota-se, a opacidade prevalece.
Sem pôr em causa aquela secularização que tem fundamento na revelação bíblica duma criação que não se confunde com o seu Criador e na distinção evangélica entre César e Deus, não é difícil constatar que a positiva autonomia das realidades temporais tem a sua contrafação num secularismo que se detém ou entretém no que imediatamente satisfaz ou enleva, iludindo inadiáveis questões de sentido.
Na Europa e além dela, globalização e secularização constituem hoje o quadro avassalador em que a evangelização se há de fazer. Mais uma vez – pois assim tem ciclicamente acontecido no cristianismo bimilenar – mudanças estruturais na sociedade (como será mais a globalização) e na cultura (como será mais a secularização) requerem “novidades” no modo de evangelizar. E, se à globalização teremos de corresponder com a densificação criativa da nossa vida comunitária e intercomunitária, à secularização também por aí daremos resposta. Na verdade, a experiência comunitária foi sempre o “caldo de cultura” da inteligência e da arte cristãs: é ver a insistência comunitária das cartas de Inácio de Antioquia contra as derivas gnósticas ou outras; a patrística, tão ligada à experiência comunitária de grandes pastores, de Ireneu a Agostinho ou Gregório; a segunda evangelização da Europa, provinda de experiências monástico-missionárias, célticas, beneditinas ou bizantinas, sem esquecer os “nossos” Martinho ou Frutuoso de Braga; as universidades medievais, de evidente raiz claustral… Tudo isto e muito mais, nos leva a considerar que para a nova evangelização duma cultura, que ultrapasse a opacidade secularista, urge indispensavelmente o desenvolvimento criativo da experiência comunitária cristã.
As nossas comunidades – ou os seus pastores e colaboradores mais próximos – continuam a ser procuradas para responder a necessidades urgentes, sociais ou religiosas. Muitos dos que nos procuram vêm como aquela mulher samaritana, para algo de imediato e concreto. O encontro com Jesus levou-a a outra sede que talvez nem pressentisse. “Evangelizou-a”, de facto, e tornou-a em evangelizadora também. O que mais importa agora, caríssimos irmãos, é fazermos das nossas realidades comunitárias outros tantos “poços de Jacob” onde a presença de Jesus continue por nós, em acolhimento pleno e convicção profunda, para que quem nos procura – ou despertemos para a procura - realmente encontre.
Estou certo e seguro de que, com o desenvolvimento do Ano da Fé, muito acontecerá neste sentido – e criativamente acontecerá. Mas uma condição primeiríssima se requer: que antes de mais e sempre, cada um de nós faça o caminho daquela mulher da Samaria, deixando-se interpelar por Cristo, que tem sede da nossa água – chamemos-lhe desejo e persistência – para nos dar a sua: água viva, que dá a vida eterna! Encontremos e reencontremos Jesus, insistentemente, no diálogo pleno em que a sua Palavra nos inclui; na lembrança constante do que disse e fez; na comunhão e adoração do Sacramento onde nos alimenta e espera; na Reconciliação em que nos recupera e acresce; nos irmãos, sobretudo os mais carentes e frágeis, em que nos aguarda cansado… Não haverá nova evangelização sem aquele “novo ardor” de que falava o Beato João Paulo II; ardor e fogo que apenas Cristo ateia em quem dele se abeira. - Cristo e o que sabemos em Cristo, conteúdo vivo da fé que professamos e renovadamente testemunharemos!
5. De tudo isto e muito mais teremos ocasião de conversar, caríssimos irmãos, ao longo das Jornadas Vicarais da Fé, que proximamente se iniciam. E tudo ativareis decerto, nos ambientes e setores da vossa vida eclesial e social. Creio e espero que, ao concluirmos o Ano da Fé, muito possamos partilhar e relançar em termos de nova evangelização, que outra coisa não será senão retomar nas presentes condições socioculturais a evangelização essencial de sempre.
Evangelização inteiramente acolhida e cumprida no coração e no percurso daquela jovem de Nazaré da Galileia, que assim mesmo foi Mãe de Jesus e é Mãe de nós todos, que em Cristo renascemos já. A Ela, Estrela da Nova Evangelização, nos confiamos agora, seguríssimos da sua proteção e bom conselho. Com Ela prosseguiremos, simples e totais, no acolhimento e entrega à divina vontade, único futuro do mundo.
+ Manuel Clemente
Sé do Porto, 4 de Novembro de 2012
Sem comentários:
Enviar um comentário