quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Festa de S. Sebastião. Santa Maria da Feira, 20 Janeiro 2012


Festa de S. Sebastião
Santa Maria da Feira, 20 Janeiro 2012
Homilia



 
«Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma». 
Neste dia em que celebramos a S. Sebastião, 
padroeiro desta cidade de Santa Maria da Feira
e das gentes deste município, ecoa para nós,
em tempos tão distantes mas tão semelhantes
ao da primeira proclamação evangélica, o convite «não temais».
Precisamos de interiorizar verdadeiramente esta advertência
para vivermos em confiança na nossa cultura marcada
por tantos sinais de morte e de medo.
Refere o evangelho que a pessoa humana
tem um valor inestimável perante Deus Pai e Criador.
Temos necessidade de exaltar a dignidade do ser humano
no contexto de uma cultura que projectou o medo
e cerceia o homem de algumas as suas dimensões e sobretudo da mais nobre e dignificante que diz respeito à sua relação com Deus. 
 
Quando somos submergidos por modelos pagãos de vida,
onde se exalta o sensual, o material, a ganância
e os apetites desenfreados, é forçoso reconhecer o avanço civilizacional
e cultural, antropológico e consequentemente ético
que o cristianismo trouxe à humanidade,
não só em afirmar a existência de Deus,
transcendente ao homem, mas também
a Sua relação amorosa com as Suas criaturas
e o convite que, pela encarnação do Verbo eterno de Deus,
lança à humanidade na dignificação pessoal de cada individuo.
Como afirma o Concilio Vaticano II «a Igreja acredita que Cristo,
morto e ressuscitado por todos, oferece à humanidade, pelo Seu Espírito,
a luz e as forças que lhe permitem corresponder à sua altíssima vocação
e que não há debaixo do céu outro nome dado aos homens
pelo qual eles devam ser salvos» (GS, 10).
A Igreja está igualmente convicta e proclama como verdade que a chave,
o centro e o fim de toda a história humana se encontram em Jesus Cristo.
Mas o medo que parece invadir a vida
e a convivência dos homens de hoje só poderá ser combatido
pela verdadeira sabedoria. 
 Tal como nos narra a primeira leitura, exige-se o esforço
e a abertura à profundidade do nosso ser
onde nos encontramos com a verdade autêntica,
onde se desvanecem as aparências e as futilidades
e somos chamados a viver a comunhão perfeita com Deus
onde tudo tem consistência e a paz não sofre ameaças.
O medo da vida, do futuro, da convivência e da verdade acerca de cada sujeito, perguntamo-nos, não estará relacionada
com o afastamento de Deus da esfera pessoal
e comunitária gerando então um desejo desenfreado de ter, de prazer e de poder?
Temos necessidade da verdadeira sabedoria porque,
como afirma o Concilio num dado passo, «a natureza inteligente da pessoa humana aperfeiçoa-se e deve aperfeiçoar-se por meio da sabedoria que atrai com suavidade a inteligência humana à investigação
e ao amor da verdade e do bem; impregnado dela, o homem é conduzido pelas coisas visíveis para as invisíveis» (GS. 15).
Por isso, a nossa época tem necessidade da verdadeira sabedoria para que as novas descobertas se tornem mais humanas.
Celebramos a festa de S. Sebastião, mártir do século III,
soldado romano que por ajudar os cristãos e se condoer das atrocidades que sobre eles infringiam as autoridades romanas acabou por sofrer o martírio sob as ordens do imperador Deocleciano. 
 Os poderes do mundo não toleram a presença de Deus nem a Sua revelação.
O ser humano não tolera ser confrontado nos seus critérios, nas suas opções e no seu poder.
Deocleciano é senhor do mundo,
protótipo do ser humano obcecado pelo domínio de tudo e de todos,
que no próximo só consegue ver um rival para combater.
No fundo, se meditarmos bem, até Deus lhe parece um rival,
aliás, um adversário particularmente perigoso,
que gostaria de privar os homens do seu espaço vital,
da sua autonomia, do seu poder;
um concorrente que indica o caminho a percorrer na vida,
e assim impede que se realize tudo o que se deseja.
É verdade: aparentemente parece que a violência,
os totalitarismos, a perseguição, a brutalidade cega
se revelam mais fortes, fazendo silenciar a voz das testemunhas da fé,
que podem humanamente parecer derrotadas pela história.
Mas Jesus ressuscitado ilumina o seu testemunho e compreenderemos,
deste modo, o sentido do martírio.
Afirma a propósito Tertuliano: «Nós multiplicamo-nos todas as vezes que somos ceifados por vós: o sangue dos mártires é semente de novos cristãos»
(Apol., 50, 13: CCL 1, 171).
Na derrota, na humilhação de quantos sofrem por causa do Evangelho,
age uma força que o mundo não conhece:
«quando me sinto fraco exclama São Paulo é então que sou forte» (2 Cor 12, 10).
É a força do amor, indefeso e vitorioso também na derrota aparente.
É a força que desafia e vence a morte (cfr. Bento XVI, homilia, 7 Abril 2008).
Dizia há poucos dias Bento XVI perante estudantes universitários que não temos necessidade de um deus genérico, indefinido, mas do Deus vivo e verdadeiro,
que abra o horizonte do futuro do homem a uma perspectiva de esperança firme e segura, rica de eternidade e que permita enfrentar com coragem o presente em todos os seus aspectos. Mas então deveríamos perguntar-nos: onde encontra a minha busca a verdadeira face deste Deus?
Ou melhor ainda: onde vem ao meu encontro o próprio Deus,
mostrando-me o Seu rosto, revelando-me o seu mistério, entrando na minha história? (Bento XVI alocução aos estudantes universitários, 15 de Dezembro de 2011).
Este é um dos maiores desafios que esta celebração nos lança a todos nós,
procurar Deus porque só nesta busca se encontra a resposta
à pergunta mais profunda que o ser humano terá de colocar-se.
Mas mais ainda, a solidariedade humana será tanto mais consistente quanto todos os homens se reconhecerem como filhos de Deus.
Vivemos muitos problemas na sociedade actual mas podemos correr o risco de nos situarmos apenas na superficialidade dos mesmos
encarando-os na dimensão económica e financeira,
quando a verdadeira raiz do mal estar actual, como diz o Papa,
é de ordem antropológica e cultural.
É urgente recolocar a pergunta acerca do homem e com ela e no seu aprofundamento as questões sobre a verdade e a autêntica liberdade dignas do ser humano.
É urgente interrogar-se sobre os valores que informam a cultura actual
e como estamos a construir uma sociedade onde o ser humano toma o centro de todas as decisões e onde as diversas dimensões do homem são igualmente valorizadas reconhecendo nele um ser transcendente e,
como pessoa, relacionado com os outros e com Deus.
Ao referir-se à promoção da cultura,
o concilio afirma que aumenta o número de homens
e mulheres que tomam consciência de serem os artífices
e os autores da cultura na sua comunidade.
Adianta ainda que cresce cada vez mais o sentido da responsabilidade
e da autonomia o que se reveste de muita importância
para a maturidade espiritual e moral do género humano.
Tudo isto ainda se torna mais evidente se perscrutarmos os anseios a um mundo mais unido e a missão comum de edificarmos um mundo melhor na verdade e na justiça.
Deste modo, «somos testemunhas do nascimento dum novo humanismo,
no qual o homem se define, principalmente,
pela responsabilidade perante os seus irmãos e perante a história» (GS. 55).
Assistindo ao desmoronar de uma sociedade e de uma cultura que exaltaram o humanismo sem Deus e mesmo contra Ele que acabou por se virar contra o homem,
é necessário construir uma nova forma de estar
e de se relacionar pautada por um novo humanismo
que só será digno do homem se Deus tiver o Seu lugar.
As palavras do Evangelho pelas quais Jesus Cristo nos exorta a reconhecer que só Deus é absoluto e que as relações pessoais devem libertar-se a partir da prioridade dada à relação com Deus são iluminadoras de uma nova ordem comunitária.
Porque só dando a vida se pode salvá-la.
Esta foi a verdadeira experiência e convicção dos mártires.
Eles ensinam-nos que só na escola da cruz se podem apreciar todas as coisas e só a partir dela se pode estabelecer uma relação pessoal com Deus, com os outros e com as coisas que dignifique todos os seres humanos.
Estai sempre prontos a dar as razões da vossa esperança, diz-nos S. Pedro.
Esta nossa celebração mergulha na tradição deste povo de Santa Maria da Feira que no meio do desespero procura o alívio e a esperança.
Busca-a em Deus embora se manifeste
na proximidade com S. Sebastião a quem recorre
para o livrar dos males que o afligem.
Precisamos de uma proclamação da esperança sólida e consistente.
E ela só o será se for verdadeiramente fundamentada e credivelmente testemunhada.
São necessárias mensagens de esperança,
Boa Nova que ilumine e desperte o ser humano para a sua realização plena, mas precisa também de gestos concretos de comunhão, de justiça, de verdade, de fraternidade, de solidariedade e de caridade.
Estas fogaceiras que hoje cativam o nosso olhar devem ser sinal de tantos que na marginalidade da nossa sociedade imploram por integração e dignificação, são desempregados que procuram o sustento para si e para as suas famílias, são injustiçados a clamar por justiça, são espoliados a reclamar o direito ao que é seu, são os pobres e humildes a reclamar a sua cidadania, são os migrantes a exigir espaço para eles.
A humanidade é um todo ou não é humana. Muitos interesses particulares e obscuros estão a fazer tremer a nossa sociedade. Não podemos caminhar numa solução que continue com os mesmos caminhos que de humanos nada têm.
O homem todo e todos os homens têm de estar no centro das decisões político-sociais e a força humanizadora que cada um de nós traz em si deve agora despontar em criatividade, esforço, partilha, comunhão e solidariedade.
Somos peregrinos do amor. Prosseguimos no amor e só no amor infinito o homem se encontra saciado. Por isso, consciente ou inconscientemente, somos peregrinos à procura de Deus que nos dá tantos sinais da sua presença mas que nós tão teimosamente queremos ignorar.
As fogaceira, pão de acção de graças, só tomará o seu sublime significado se nos conduzir a um outro pão que pela intervenção do Espírito de Deus nos faz comungar o Seu próprio Filho Jesus Cristo. A Eucaristia, celebração tão simples e humilde, torna-se no maior dos desafios e das maiores propostas humanizadoras da sociedade dos homens de todos os tempos e também do nosso.
Esta mesa eucarística torna-se sinal da grande mesa para a qual Deus quer convidar todos os homens para saborearem dos bens que só Deus Pai nos pode oferecer.
Mas é também compromisso a olhar toda e qualquer pessoa como irmã com a qual sou obrigado a partilhar da minha vida.
Termino implorando de S. Sebastião para a autarquia do município da Feira, para as suas gentes, para os mais carenciados e os que de algum modo buscam uma sociedade melhor as suas graças e bênção
Amén.
+ João Lavrador
Bispo Auxiliar do Porto

Sem comentários:

Enviar um comentário