É uma pergunta que qualquer leitor do último número deste jornal pode fazer, baseado no nosso artigo aí publicado. É certo que a quantidade é impressionante, por exemplo, 121 padres só na freguesia de S. Ildefonso (Porto). Os tempos actuais de escassez crescente explicam esta admiração e surpresa.
Quanto à qualidade religiosa, naturalmente variada, até com alguns casos pouco ou nada modelares, não vamos tratar aqui, pois teríamos de a contextualizar com as características e mentalidades da época para podermos apreciar as diversas motivações subjacentes.
Tal quantidade de clero poderia até fazer-nos supor a existência de ”desemprego” no clero, para utilizarmos uma nomenclatura actual do mundo laboral, mas não.
Vamos apresentar alguns casos que mostram como eram precisos tantos padres para as necessidades religiosas da época.
Em 1591 o pároco de Fermedo, P. Manuel Carvalho (1), fechou o contrato com os cónegos da Sé do Porto para estes rezarem”muitas missas”pela sua alma e isto “enquanto durar o mundo”!
Decerto que não está actualmente a cumprir-se.
Em 1597 Mateus Pereira de Sá, em Coimbra, manda no seu testamento, entre várias coisas, que lhe rezem no dia do funeral duzentas missas (2).
Como naquele tempo nenhum padre, à semana, podia rezar mais duma missa por dia , quer dizer que se tinham de arranjar por Coimbra e arredores esse número de padres.
Mais tarde, as igrejas passaram a ter vários altares, o que já facilitava a tarefa, pois de manhã até à tarde em cada altar podia haver para cima de 10 missas ( não havia então o sistema actual da concelebração).
Quanto ao século XVIII, a Dra Norberta Bettencourt Amorim (3), fornece-nos casos mais impressionantes, donde se reconhece a necessidade de haver muitíssimos padres disponíveis.
Assim, como ela documenta, houve em 1725
o caso de haver duzentas missas gerais de corpo presente,
e, se não fosse possível rezar toda esta quantidade no dia do funeral,
o resto que faltasse, podia ser completado no dia seguinte.
A expressão”missas gerais quer dizer a quantidade máxima de missas num dia.
Em 1726 uma viúva dispôs 2 dias de missas gerais de modo a perfazer trezentas missas na totalidade.
Em 1.720 uma criada dispôs em testamento 3 dias de missas gerais.
Estes números avultados eram mais nos fidalgos, grandes eclesiásticos e pessoas ricas, pois no povo a quantidade habitual era naturalmente inferior e variável.
Em 1725 um cónego da Colegiada de Guimarães dispôs haver para si, após a sua morte, treze (doze mais um) dias de missas gerais.
Em 1 751 uma mulher ordenou vários dias de missas gerais até perfazer mil missas.
Em 1709 outra mulher mandou haver três mil missas (sem mencionar expressamente a maneira de”missas gerais”)
e em 1755 o arcipreste da mesma Colegiada de Guimarães pediu cinco mil missas (sem aludir ao processo de”missas gerais”, decerto para ser mais fácil de cumprir o pedido). O povo simples estava longe destes números mas, certamente, mandava celebrar mais missas do que o povo de agora!
António Marques de Carvalho, do lugar da Pedra, freguesia de S. Come do Vale, concelho de Vila Nova de Famalicão, pessoa abastada que era,
no seu testamento de 27-1 1-1747, ordenou que no funeral
ou nos dias depois se rezassem as seguintes missas:
duas mil quinhentas missas gerais (decerto em dias seguidos) na igreja paroquial, duzentas missas só duma vez no convento de S. Francisco em Barcelos
e mais 150 missas nos altares da igreja paroquial (4).
Durante muito tempo, uma grande parte dos funerais tinham ofícios (à excepção de pessoas pobres),
tendo o ofício mais simples (rezado) o mínimo de 5 padres
(se fosse cantado, eram cerca de 9).
Em Ovar, em 1821, havia 34 padres e estavam todos ocupados,
não havia “desemprego”segundo a nomenclatura actual.
Rezavam missas (à semana também) nas capelas (não estavam desertas durante o ano, ao contrário do que acontece hoje).
Outros padres eram capelães de companhias vareiras de pescadores.
Em muitas freguesias o Abade não rezava,
por comodidade, a missa primeira ao domingo,
por ser cedo (disso encarregava-se um outro padre).
Em 1821 ia um padre de Pigeiros rezar a missa primeira
ao domingo na igreja da freguesia do Vale.
O P. Manuel José Pereira Duarte, de Pigeiros, falecido em 1901
e antigo aluno do Abade Osório,
costumava ir a pé rezar diariamente missa a Lobão,
conquistando lá tal simpatia que eles até lhe vinham cultivar os campos em Pigeiros.
No fim de toda esta resumida exposição,
perguntará o leitor: os ricos, porque podiam mandar rezar mais missas que os pobres, iam assim mais depressa para o céu?
À primeira vista e superficialmente, pode parecer.
Mas, vendo as coisas em maior profundidade, não é bem assim.
Deus pela sua bondade perdoa,
evitando-nos o inferno,
e há ainda a sua justiça (no fim Deus tem de ser justo)
exige reposição da virtude
ou reparação/penitência do mal feito,
mesmo com a solidariedade doutros.
Se a bondade de Deus pelo seu perdão nos pode
livrar do inferno,
a sua justiça, enquanto não estiver satisfeita,
impede-nos o céu,
mantendo-nos no aperfeiçoamento
de mais virtude no purgatório.
Só os merecimentos é que satisfazem a justiça,
não o dinheiro propriamente,
embora deva ser usado para bem de todos.
Notas:
(1) Alfredo G. Azevedo e Domingos A. Moreira, Fermedo - Aspectos da sua História, Porto 1973, p. 199.
(2) Os Homens e a Morte na Freguesia de Oliveira em Guimarães [...], Guimarães 1982, p. 28 e 29.
(3) Eugénio de Castro, As Capelas Sepulcrais da Igreja do Carmo em Coimbra, Coimbra 1931, p. 23, separata do vol. 7 da revista Biblos.
(4)“ Manuel Albino Penteado Neiva, Vale (S. Cosme),ano de 2009, p.214.
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